[Soloterapia #61] Vale tudo por amor?
Para o amor ao outro, vale tudo. Para o amor a nós mesmas, nem sempre.
Ah, o amor… esse sentimento tão lindo que nos deixa nas nuvens e que, muitas vezes, nos faz abrir mão de tantas coisas para vivê-lo. Vale tudo por amor? A novela remake do momento mostra, em sua trama, que muitos fazem tudo por dinheiro. Por amor ao outro, muita gente também é capaz de fazer. E se eu falar de amor próprio? Será que você também é capaz de fazer tudo por ele?
Esse, infelizmente, é o amor que menos vale na cotação da vida. E, no fundo, é ele que nos sustenta, que mais nos impacta. E não entenda isso como egoísmo ou falta de noção sobre a importância dos outros em nossa vida. Quem me lê aqui, mesmo que há pouco tempo, sabe que não levanto essa bandeira. A gente tem sim que amar o próximo, mas quando a gente não se ama pode ficar até difícil de oferecer amor ao outro. Talvez ofereçamos algo que não seja nem amor, mesmo querendo fazer essa entrega.
É engraçado como é possível amar tanto o outro e esquecer de si. Muitas vezes, você vai entregar o mundo a outra pessoa e esquecer que você também precisa de um lugar para existir. E aí, fica sem chão. Nesses casos, o amor próprio nos salva.
Na verdade, eu acho que o amor próprio sempre vai nos salvar. Seja nos dando entendimento e força para sair de lugares onde não somos valorizadas, seja para termos paciência com nosso processo, seja para acolher nossas dores ou, seja para entender que somos merecedoras de conquistas, de empregos, de viagens, de experiências, de relações e tudo o mais que queiramos.
Uma vez, conversando com uma amiga sobre isso, perguntei para ela: você não é capaz de desejar e fazer até o impossível para dar o melhor para a sua mãe, para o seu filho, para um amigo, para o seu marido? Por que não consegue fazer o mesmo por você?
Quando vamos acolher alguém, por exemplo, somos muito cuidadosas, mas não usamos as mesmas palavras quando dialogamos com nós mesmas. Para o amor ao outro, vale tudo. Para o amor a nós mesmas, nem sempre.
Nós, mulheres, fomos socializadas para a doação, para o cuidado, para a aceitação. Fomos focadas no externo. Por isso, acaba sendo mais difícil romper essa dinâmica. Vejo a solitude, também, como um caminho de mudança, pois ela ajuda a equilibrar e a girar essa chave para o interno e, através dela, é possível se enxergar, se valorizar e passar a se amar mais.
E quando digo se amar mais, não digo se amar apenas quando se achar perfeita ou uma fada sensata sem defeitos. Pelo contrário: a gente sabe que se ama de verdade quando, além de amar nossas qualidades, ama também nossos defeitos, nossas faltas, nossas vulnerabilidades. Aí que muita gente se confunde e acha que para desenvolver o auto amor precisa atingir a melhor versão (tão falada nas redes).
Quando você ama outra pessoa, você ama também os defeitos dela. Então por que espera que se ame apenas quando atingir a perfeição? É claro que se amar também é perceber que há características em nós que merecem a mudança, mas é justamente no acolhimento e não na crítica que conseguiremos essa transformação.
A psicanalista Carol Tilkian diz que “o amor próprio tem muito mais a ver com aceitação do que com conquista.”
Apesar do amor próprio ser da natureza do self(eu), a gente tem que entendê-lo, também, como uma construção coletiva. A gente aprende a se amar pelo amor do outro. A influência do amor que você recebe dos seus pais, de familiares e de amigos impactam no desenvolvimento do amor que você sente por si. As amizades, para mim, são o lugar mais fértil para essa elaboração, pois é onde costumamos estar 100% confortáveis, sem medo de errar.
Porém, não acredito que o amor romântico tenha tanto impacto nessa construção, justamente porque a gente acaba se exigindo essa perfeição para ser aceita ou amada, principalmente no início. Talvez o amor romântico tenha um efeito maior no fortalecimento do amor próprio, no caso de uma boa parceria, já que a relação romântica pode ser fonte até de sua destruição, se o amor próprio não estiver bem estabelecido. E o auto amor nos ajuda na seleção de relações mais saudáveis e mais alinhadas, porque nos valida a retirada daquelas que dão sinais de que não são. Se retirar é se respeitar. E respeito é uma das faces do amor, tanto pelo outro, quanto por si.
Portanto, as nossas relações com os outros nos ensinam a nos amar e a nossa relação com nós mesmas faz a manutenção e a sustentação desse amor.
Desejo a vocês o amor próprio que a Maria de Fátima (personagem que foi da Glória Pires e agora é da Bella Campos, na novela Vale Tudo) tem ao vender a casa da própria mãe e ao fazer todas as falcatruas que ainda vai cometer por se achar merecedora da vida que sonha ter. Mas, por favor, tenham amor próprio com ética. (Só queria encerrar o texto com uma conexão com a novela e fazer uma gracinha. Risos).
Bora para os quadros da semana?
Eu costumo dizer que a maior preocupação de uma mulher deveria ser a construção dessa tríade: amor próprio, autoconfiança e autoconhecimento. Ajuda demais a passar pelos desafios da vida.
Hoje, o quadro Solo Dicas está bem recheado. Comecei lendo o livro de um autor que me foi indicado na semana passada, de quem gostei tanto que me levou a descobrir sua entrevista ao Roda Vida, no ano passado, e acabei encantada. Aí, minha cabecinha já pirou e eu quero trazer um pouco desses conteúdos para vocês, então, senta e faz o chá (ou o café) que lá vem história.
O autor por quem me encantei foi o jovem francês Édouard Louis, de apenas 32 anos (inacreditavelmente). Me indicaram seu livro de estreia “O Fim de Eddy” mas, ao pesquisar por suas obras, decidi começar pelo que mais me chamou a atenção e imagino que eu nem precise explicar para vocês o motivo: “Lutas e Metamorfoses de uma Mulher”, em que ele conta a história de sua mãe e de toda a violência social, física e psicológica que sofreu com seu marido, pai do escritor e também de sua fuga (dele e da mãe) desse mundo. Aliás, todos os seus livros são uma autobiografia.
Achei uma leitura fluida e fácil de fazer, porque tem uma linguagem simples, apesar de uma temática pesada. Ele tem uma escrita sem extravagância mas muito sensível e honesta, com frases que te colocam para pensar.
Algumas delas que grifei no meu Kindle:
“Eu tinha me esquecido, acho, de que ela era livre antes no meu nascimento. Devo ter pensado nisso algumas vezes quando ainda morava com ela, que um dia ela deve ter sido forçosamente jovem e cheia de sonhos. Olhando essa imagem, senti as palavras fugirem de mim. Vê-la livre, projetada com todo o seu corpo para o futuro, me trouxe de novo à mente os anos da sua vida compartilhados com meu pai, as humilhações impostas por ele, a pobreza, vinte anos da sua vida mutilados e quase destruídos pela violência masculina e pela miséria, entre vinte e cinco e quarenta e cinco anos, idade em que as pessoas experimentam a vida, a liberdade, as viagens, o autoconhecimento. Me lembrou que esses vinte anos de vida destruídos não foram uma coisa natural, aconteceram pela ação de forças externas a ela - a sociedade, a masculinidade, meu pai -, e que, portanto, as coisas poderiam ter sido diferentes.”
Na entrevista, ele menciona essa problemática da masculinidade e como isso afetou o pai, tanto na violência com a mãe, quanto na violência com ele, ao não aceitar um filho gay. Mas ele percebe que essa violência não pode ser responsabilizada de forma individual, porque ela é passada entre as gerações e seu pai aprendeu a ser assim. Falamos disso na última news, quando comentei sobre a série Adolescência.
“Sentia-se humilhada, mas ela não tinha escolha, ou pensava que não tinha, a fronteira entre as duas coisas é difícil de definir, e ela ficou com ele por vinte anos.”
“Outra pergunta: será que sou capaz de entender a vida dela se essa vida foi especificamente marcada por sua condição de mulher? Se sou construído, percebido e definido pelo mundo que me cerca como um homem?”
“Como a vida dela estava privada de acontecimentos, um acontecimento só podia se dar através do meu pai. Ela não tinha mais história; sua história só podia ser, fatalmente, a história dele.”
Esse livro, assim como os outros, são bem curtinhos (li em duas noites) e focados em fazer uma crítica social. Édouard vem de uma origem bastante pobre, onde a violência impera e é homossexual, realidade que também o fez sentir bastante agressividade. O estilo e o tema da sua escrita são bem parecidos com o da Annie Ernaux, outra escritora francesa e de literatura contemporânea.
Como fiquei bastante curiosa sobre ele, acabei encontrando sua entrevista ao Programa Roda Viva, em outubro do ano passado. É uma entrevista super densa. Eu demorei algumas horas para assistir porque são temas muito profundos (críticas sociais, violência, literatura, filosofia e política) e suas respostas são bastante complexas. Ele é um cara inteligentíssimo e com MUITAS referências. É impressionante como ele consegue responder trazendo pontos sobre seus livros e outras obras e ainda fazer reflexões bastante originais. Assistam!
Achei muito interessante que, na entrevista, ele explica que escreve o que chama de uma literatura de combate. Foi a violência que sofreu que o fez querer sair dali e criar um novo caminho, que trilhou através da escrita, então ele entende que foi salvo por essa mesma violência e pela exclusão que viveu. Um paradoxo que ele tenta entender aos escrever os livros.
Consigo compreender um pouco - guardadas as devidas proporções - o que ele diz, já que escrevo muito sobre mim e minhas vivências. Na escrita dos meus dois livros, por exemplo, consegui elaborar pontos de dois episódios marcantes da minha vida (a morte do meu pai e o fim de um relacionamento) ao me permitir reviver sensações e formar novos entendimentos.
Édouard diz que a autobiografia é a arte dos sobreviventes: “Eu não sobrevivi à violência e depois contei a história. Eu sobrevivi porque precisava contá-la.”
Ele acredita, também, que escrever é uma forma de combater a violência: “Quando a violência consegue produzir a palavra é como produzir a vacina para o próprio vírus, uma forma de destruí-la.”
Em outro momento da entrevista, ainda falando sobre porquê não abandonaria o estilo autobiográfico, ele diz que a autobiografia é coletiva porque nela, apesar de falar sobre você, quando alguém vem te falar sobre o livro, ele vem contar sobre a história dele, não sobre a minha. “Quando eu digo isso, o que espero fazer é que outras pessoas se sintam autorizadas a dizer e a compreender que suas experiências também tem o direito de serem contadas.”
Outros trechos muito interessantes do bate-papo com o escritor são sobre violência e política. Finalizo o quadro com dois que me marcaram:
“A violência é um espectro que existe e não existe. Mesmo que você nunca tenha sido violentada você sabe que aquilo pode acontecer e pensa nisso sempre. Mas você nunca sabe quando pode acontecer, então, precisa ficar sempre atenta.” Me lembrou o medo que as mulheres sentem constantemente e que falei na última edição da news.
“Quanto mais você é dominado socialmente, quanto mais é excluído, mais está exposto à política. Há uma espécie de paradoxo nela. Os dominantes, aqueles que decidem na política, os que tem o poder na política, são aqueles para quem ela não quer dizer nada. Ela não influencia seus corpos, não transforma suas vidas.”
Aqui, deixo o link do Livro “Lutas e Metamorfoses de uma mulher”: clica aqui
E aqui, o link da entrevista do Roda Viva: clica aqui
Já comecei a ler o seu livro mais recente “Monique se liberta”, que é a continuação da história de sua mãe. Volto com novidades.
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Espero que tenham curtido a Soloterapia de hoje = ) Volto no domingo que vem!
Beijos,
Flavia Goulart